Foto: Marcione Oliveira
Reprodução da matéria de Michael Esquer para a plataforma ((o)) Eco.
Encurralados pela degradação de florestas e em busca de comida e abrigo, os morcegos ainda resistem em áreas utilizadas pela pastagem. Isso é o que revelam pesquisadores brasileiros que analisaram o comportamento do voador em “sobras de floresta” de uma fazenda de criação de gado no Pantanal. A conclusão foi que, apesar de se apresentarem em menor número de indivíduos em alguns grupos, os morcegos ainda apresentam grande abundância de algumas espécies, e desempenham serviços ambientais importantes tanto para as áreas remanescentes no entorno do pasto quanto para o próprio gado, através do controle de pragas, dispersão de sementes e polinização.
Essa relação entre morcegos e áreas degradadas pela pastagem foi descrita em estudo que acaba de ser publicado na revista científica alemã Mammalia, e que fez parte do mestrado em Biologia Animal (Zoologia) pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) de Marcione Brito de Oliveira, autora principal da investigação.
O estudo chama a atenção da importância da manutenção dos remanescentes de floresta em áreas degradadas para os morcegos – uma vez que os voadores também os utilizam como refúgio –, assim como para os serviços ecológicos prestados por eles. E, ao mesmo tempo, alerta para a falta de informação sobre qual o nível de degradação aceitável pelos voadores para que a sua conservação seja mantida.
Ao todo, o estudo analisou 24 fragmentos de territórios dentro de uma fazenda situada em Barão de Melgaço, município mato-grossense que integra a região norte do Pantanal. “Fragmentos florestais são áreas de vegetação natural interrompida por barreiras antrópicas ou naturais. Por exemplo, na área de estudo tínhamos fragmentos de floresta de acuri, vegetação natural do bioma Pantanal”, explica Oliveira a ((o))eco.
Para descobrir se a composição dos grupos funcionais – conjunto de espécies de morcegos que subsistem de um mesmo tipo de recurso – eram diversos e ainda desempenhavam um papel importante na área onde estavam inseridos, e também verificar se havia a ocorrência de espécies que normalmente não são encontradas em áreas degradadas, a pesquisa utilizou a metodologia de rede de neblina.
“É um método de captura muito utilizado para morcegos. Normalmente são armadas de cinco a dez redes. Neste trabalho foi de sete a oito redes por cada ponto”, explica Marcione. Na fazenda, as redes foram armadas do nível do solo a mais ou menos 2,5 m – 3 m do chão, e ficaram das 6h da tarde até meia noite. “Durante essas seis horas fizemos a captura e depois uma triagem, onde identificamos os morcegos”, acrescenta a pesquisadora.
No Pantanal, a amostragem ocorreu entre novembro e dezembro de 2014, respectivamente, nos períodos de seca e começo da cheia no bioma, e também no final do período seco, em outubro de 2015. Durante 32 noites, os 24 fragmentos alvos da análise tiveram morcegos analisados pelo estudo. “Só não amostramos no momento que já estava alagado porque é muito difícil circular nessas áreas. Porém, quando a água está chegando o aumento de recurso já é bem significativo e a fauna muda completamente. Essa diferença também foi encontrada na composição dos grupos funcionais”, acrescenta a bióloga.
A pequisa chegou ao número de 27 espécies de morcegos identificadas, que foram divididas em 11 grupos funcionais: os que se alimentam de frutos (frugívoros); insetos (insetívoros); sangue (hematófago); carne (carnívoro); nectar (nectarívoro); entre outros. No período seco, foram identificados 306 morcegos entre esses grupos, enquanto que no começo do período cheio foram identificados 352, o que configura um total de 658 registros de morcegos no total.
De um lado, a pesquisa encontrou uma grande diversidade de espécies entre alguns dos 11 grupos identificados, mas ao mesmo tempo também constatou uma menor número de morcegos entre alguns desses mesmos grupos. Ou seja, muitas espécies e poucos indivíduos. Com apenas 114 morcegos no começo da cheia, esse foi o caso do grupo funcional de insetívoros, que faz o controle de pragas. O número foi ainda menor no período seco (apenas 10 indivíduos).
Os pesquisadores hipotetizam que esse número baixo pode estar relacionado ao tamanho do fragmento florestal, e também à dinâmica de inundação, que atinge alguns dos sítios analisados. “Se esse fragmento for muito pequeno, a nossa hipótese é que essa diferença na abundância pode ser também devido a isso. Quanto menor o fragmento, menor a abundância de indivíduos e riqueza de espécies. Isso seria uma das hipóteses”, comenta.
De outro lado, o estudo chegou à conclusão de que outros grupos funcionais, como o de frugívoros, encontrados em maior abundância tanto no começo da cheia (145 morcegos) quanto na seca (308), não apenas estavam convivendo nos fragmentos como também estavam contribuindo para a manutenção dos remanescentes de floresta nas áreas degradadas.
Quanto às espécies que normalmente não são encontradas em áreas degradadas, essas foram encontradas em menor número de indivíduos nos fragmentos florestais da fazenda. No total, foram 27 morcegos, sendo eles: Lophostoma brasiliense (5 morcegos), Lophostoma silvicolum (3), Trachops cirrhosus (6) e Garderycteris crenulatum (13).
Para Oliveira, o resultado aponta a importância funcional dos morcegos, mesmo em uma área degradada pelo pasto, como é o caso da fazenda analisada no Pantanal. “Nem que seja para forrageio (busca de alimentos) dentro e entre áreas, eles estão presentes. Estão ligados a vegetação de sucessão que está em constante crescimento, estão mantendo a área. Por mais que a área seja degradada e que esteja perdendo muitos grupos funcionais importantes, ela mantém grupos que estão contribuindo para a manutenção desses remanescentes […] pela dispersão de semente, pela polinização”, conclui a pesquisadora.
Importância dos remanescentes
Para a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Martha Lima Brandão, segunda autora do estudo, a nova pesquisa reforça a importância para os morcegos da manutenção de remanescentes florestais mesmo em áreas que já foram degradadas pela pecuária, e que um dia também já foram áreas naturais.
“E quando possível, a ampliação, porque a palavra já fala por si só ‘remanescentes florestais’. Que possamos ampliar, para conectar fragmentos. Isso é muito importante para a circulação das espécies e para a manutenção da biodiversidade”, explica a ((o))eco.
Mesmo sendo fragmentos de floresta, Brandão conta que essas áreas contribuem, ainda que menos do que uma área florestada, para a conservação da biodiversidade. E no caso dos morcegos, além da dispersão de sementes e polinização, isso também pode significar a diluição de patógenos e doenças. “Um único insetívoro se alimenta de milhões de mosquitos, que são uma grande ameaça porque são vetores de diversos patógenos. […] e essas espécies, muito específicas, muitas vezes não estão em áreas degradadas”, explica.
Além da degradação ambiental, que figura como uma das principais ameaças para os morcegos, a pesquisadora também aponta a perseguição como outro agravante para as espécies. “O morcego não é um animal da ‘fofofauna’, não são espécies queridas, muito por desconhecimento e ignorância das pessoas, porque são incríveis […] e um grande aliado para saúde”, finaliza.
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