Foto: Silas Ismael
Reprodução da Michael Esquer da plataforma ((o)) Eco.
Na zona rural de Pedro Gomes, cidade do interior de Mato Grosso do Sul (MS), o silêncio faz companhia ao som da água que cai. É a cachoeira Água Branca, que com os seus imponentes quase 80 metros de altura de queda livre é considerada uma das maiores em território sul-mato-grossense. Este patrimônio turístico e natural, até pouco tempo desconhecido, está ameaçado com a previsão de instalação de uma hidrelétrica. Com licença prévia (LP) emitida pelo Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) em 2021, a Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Cipó deve reduzir o volume de água da cachoeira, uma vez que parte do recurso hídrico do córrego Água Branca, que a alimenta, será utilizado para a geração de energia elétrica.
Na região, acompanham o processo de licenciamento da hidrelétrica a Rede Pantanal e a ONG Ecoa (Ecologia e Ação), que integra o Observatório Pantanal – coalizão composta por 43 instituições socioambientais atuantes na Bacia do Alto Paraguai (BAP) no Brasil, Bolívia e Paraguai. Neste ano, a Ecoa viajou até a cachoeira, onde desenvolveu uma vistoria e entrevistas com proprietários que vivem na região.
Em carta enviada ao Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS) em junho, a ONG listou inconsistências encontradas em torno do processo de licenciamento. Entre elas, a previsão da construção do empreendimento a poucos metros da cachoeira; a inviabilização da atividade turística na região; reconhecimento, por parte da empresa executora, de danos que devem ser provocados pelo empreendimento; contrariedade de moradores da região à instalação da PCH; e discordância entre a potência definida pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e no processo de licenciamento (2,9 mW contra 3,2mW).
“A cachoeira Água Branca faz parte de um sistema ecológico único, em uma região já devastada pela agricultura industrial”, conta a ((o))eco a bióloga Paula Isla Martins, analista de conservação na Ecoa e coordenadora da Rede Pantanal — coletivo formado por 53 organizações não-governamentais, movimentos sociais, comunidades tradicionais e populações indígenas. Segundo ela, o córrego Água Branca integra a Bacia do Alto Paraguai (BAP) através da sub-bacia hidrográfica Piquiri/Correntes. “Suas águas chegam até o Pantanal”.
Ainda conforme a Ecoa, que diz ter tido acesso a parecer emitido pelo Imasul, o barramento provocado pela PCH Cipó pode desviar cerca de 80% do fluxo de água da cachoeira Água Branca. Isso, segundo a ONG, provocaria impactos irreversíveis ao local, a medida em que também afetaria a queda d’água e o microclima da região.
Na manifestação mais recente ao MPMS, um ofício enviado na última sexta-feira (4), a ONG também apresentou recomendações e pedidos da sociedade civil. Entre eles, comprovação da diminuição da potência instalada da hidrelétrica – mencionada pelo empreendedor em ofício ao Imasul –; especificação da vazão final da cachoeira após a instalação do empreendimento; compromisso documentado, e com validade legal, do empreendedor com a preservação da cachoeira; avaliação dos impactos da hidrelétrica para a BAP e Pantanal; e projeto de turismo proposto para a região – uma das condicionantes para a emissão da LP ao empreendimento.
“Os moradores de Pedro Gomes e região são contrários à instalação da represa na cachoeira por que ela é a maior beleza natural que o município possui, sendo a segunda maior cachoeira de queda livre do estado, e por isso tendo um imenso potencial turístico. Ou seja, o potencial de geração de trabalho e renda é imenso e poderá ser perdido”, conclui Martins.
((o))eco entrou em contato com o Imasul através de assessoria e ouvidoria para solicitar os documentos relacionados ao empreendimento hidrelétrico. Até a publicação da reportagem o pedido não tinha sido respondido.
Investigação do Ministério Público
O MPMS instaurou inquérito civil para apurar e avaliar os possíveis impactos ambientais decorrentes da instalação do empreendimento no córrego Água Branca. Em julho, o órgão solicitou ao Imasul informações sobre o andamento do processo de licenciamento do empreendimento, estudo de impacto ambiental (EIA) e qualquer outra PCH que estivesse em processo de licenciamento em Pedro Gomes.
Em sua resposta, o Imasul disse que a PCH Cipó, sob titularidade da Cipó Energia LTDA, formalizou o processo de licenciamento em abril de 2014. A licença prévia (LP), por sua vez, foi emitida em dezembro de 2021 sob o número 95/2021, e com validade de quatro anos. Até então, não havia sido formalizado o processo de Licença de Instalação (LI).
Quanto ao EIA, o Imasul disse que o empreendimento, “de acordo com Resolução SEMADE n. 9, de 13 de maio de 2015”, na verdade, requer o Estudo Ambiental Preliminar (EAP), que já teria sido realizado e entregue. Dentro da hierarquia de licenciamento, o documento é menor e menos complexo do que o EIA. Sobre a existência de outras PCHs em processo de licenciamento em Pedro Gomes, o Imasul disse que, após levantamento, este não foi encontrado.
Histórico do projeto
O interesse no desenvolvimento de estudos para a implantação da PCH Cipó no córrego Água Branca surgiu em 2011, pela Hacker Industrial LTDA, que até meados deste ano era quem possuía a titularidade da hidrelétrica. A empresa, por isso, adquiriu o Sítio Manson, propriedade onde se situa a cachoeira Água Branca, para aprofundar os estudos de viabilidade e instalação do empreendimento.
Conforme parecer técnico da Gerência de Licenciamento Ambiental (GLA) do Imasul, que integra o inquérito em andamento no MPMS, o primeiro pedido de LP da hidrelétrica foi protocolado pela empresa em 2014. No pedido, apresentado junto com o EAP, foi observada a necessidade de complementações. Por isso, a GLA, na época, solicitou a manifestação da Gerência de Unidade de Conservação (GUC) sobre a Lei que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
“Em resposta, a GUC informa que por tratar-se de área frágil, onde o recurso hídrico drena para o Pantanal, recomenda que o empreendedor apresente o EIA/RIMA para melhor avaliar os riscos e impactos decorrentes da implantação desta PCH, considerando a paisagem e sua potencial utilização pela atividade turística na região”, diz trecho do parecer técnico sobre o que aconteceu na época.
O documento também apontava a manifestação do Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia Hidrográfica do Rio Taquari (Cointa), que recomendava a preservação da paisagem, água, peixes, aves, árvores e “demais formas de vida do local e seu entorno para que possam continuar gerando qualidade de vida tanto para a própria natureza quanto para a comunidade local”.
Nesse cenário, em 2015, a equipe de EIA/RIMA do Imasul se manifestou pelo indeferimento da área de implantação da PCH “haja vista a beleza cênica existente” e a compatibilidade com critérios da Lei que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Diante disso, foi em 2016 que a hidrelétrica protocolou a possibilidade de uma nova proposta, que pudesse também contribuir com o desenvolvimento sustentável da região, neste caso o turismo.
Na nova proposta, os empreendedores propuseram diminuir a geração de energia para manter até 50% da vazão da cachoeira Água Branca. Além disso, a Hacker Industrial LTDA também sugeriu a instalação de um dispositivo artificial no topo da cachoeira “permitindo o direcionamento da água para a largura do véu atual, independentemente da vazão remanescente, permitindo que o aspecto visual da cachoeira permaneça, com spray d’água atual e a manutenção do microclima associado”, acrescenta outro trecho do parecer técnico.
Após entender a viabilidade da proposta turística associada ao projeto, a equipe de turismo do Imasul pediu a apresentação de um projeto ambiental como medida compensatória a fomentação do turismo e a proteção e manutenção da vegetação existente no local. Também foi apontada a necessidade de obter apoio das prefeituras de Pedro Gomes e Sonora ao empreendimento, assim como a realização de uma audiência pública para informar a comunidade local sobre o projeto.
Depois disso, a proposta técnica ambiental para o desenvolvimento do turismo no Sítio Manson foi entregue pela Hacker Industrial LTDA ao Imasul, em 2018. Após a realização de outros trâmites pertinentes ao processo, o Imasul emitiu a LP para a hidrelétrica, com 3,20 MW de potência instalada, no ano passado. Em ofício enviado ao Imasul neste ano, porém, foi dito que por decisão do empreendedor a potência instalada será alterada para 2,00 MV para o monitoramento da vazão no Córrego Água Branca.
Neste ano, a titularidade do empreendimento também foi transferida da Hacker Industrial LTDA para a Cipó Energia LTDA, assim como a LP. Todas essas informações constam em parecer técnico do Imasul que integra o inquérito em andamento no MPMS. (LEIA AQUI).
“Falsas as alegações”
A Cipó Energia LTDA foi notificada sobre a existência do inquérito civil. A empresa, através de seu representante legal, respondeu à notificação no mês passado. Na manifestação, o empreendedor pediu que o MPMS retificasse a informação de que o empreendimento se trata de uma PCH, quando na verdade, segundo ele, se trata de uma Central Geradora Hidrelétrica (CGH) – o que contradiz a LP emitida pelo Imasul, onde o empreendimento é descrito como uma PCH.
No documento, a empresa disse que não formalizou o pedido da LI porque ainda está cumprindo as condicionantes ambientais contidas na LP emitida pelo Imasul, o que “demonstra interesse do empreendedor em promover a implantação do empreendimento de acordo com a exigência legal pertinente”. A manifestação informou que, até então, inexiste qualquer dano, prejuízo ou impacto ambiental, uma vez que não foi expedido o documento que permitiria qualquer alteração que fosse no ambiente.
Em outro trecho, o empreendedor esclareceu que são “falsas as alegações e notícias de que a implantação da CGH Cipó extinguirá a cachoeira existente no córrego Água Branca”. O representante ainda disse que o turismo no local somente será possibilitado por conta da dita “CGH” Cipó. Segundo a própria manifestação, seria essa uma das condicionantes da LP emitida pelo Imasul ao empreendimento.
“O projeto de turismo local está sendo desenvolvido e será oportunamente submetido ao Imasul para a devida apreciação. Como o turismo se destinará também à visitação à cachoeira, por óbvio que a mesma deverá ser preservada para viabilizar a atividade turística”, disse a manifestação, ao também pontuar que o local encontra-se isolado e praticamente inacessível “sem qualquer estrutura ou orientação que identifique esse ponto turístico, não havendo adequada divulgação da cachoeira como ponto turístico para o público em geral, justamente pela falta de estrutura e acessos adequados”.
Após defender o rito legal do licenciamento do empreendimento, a empresa também pediu o arquivamento do inquérito ao mencionar iniciativa semelhante realizada em 2019. Na época, o MPMS também instaurou inquérito para apurar potenciais danos ambientais da PCH Cipó. O inquérito citado foi arquivado em 2020 sob justificativa de que o empreendimento sequer havia sido instalado, e nem mesmo tinha recebido qualquer licença. O arquivamento, porém, mencionava que assim que se iniciassem “os trabalhos para a instalação da PCH Cipó” em Pedro Gomes, o MPMS instauraria novo procedimento investigativo para acompanhar e coibir danos ao meio ambiente.
Volume de água reduzido
Ainda no mês passado, a Cipó Energia LTDA, através de seus representantes legais, se reuniu presencialmente com o MPMS, na sede do Fórum da Comarca de Pedro Gomes (MS). Conforme a ata do encontro, na ocasião foi apresentado o projeto da hidrelétrica e os processos aos quais ela já tinha passado, como a realização de uma audiência pública, em 2018, e a emissão da LP, em 2021.
Na reunião, os representantes do empreendimento abordaram condicionantes impostas à emissão da LP, que, segundo eles, já estariam sendo viabilizadas. Entre as condicionantes, novamente, foi pontuado o turismo, cujas obras de viabilização também serão de responsabilidade da Cipó Energia LTDA.
Apesar de negar que a PCH irá “destruir” a cachoeira, os representantes da empresa confirmaram o temor de ambientalistas e moradores de Pedro Gomes: “De fato haverá uma redução no volume de água”, disseram, conforme consta na ata da reunião.
A Promotoria de Justiça da cidade perguntou a quantidade de energia, de fato, a ser gerada pelo empreendimento. A empresa, no entanto, disse que essa informação será dada quando do protocolo do pedido da LI.
A preservação da cachoeira
Um dos compromissos firmados pela Cipó Energia LTDA durante a emissão da LP foi a garantia da beleza cênica da cachoeira Água Branca. Isto é o que aponta ofício que apresenta o Estudo Comparativo para a Preservação da Beleza Cênica. Elaborado pelo empreendedor, o documento foi enviado em agosto deste ano ao Imasul.
No ofício, o empreendedor solicitou manifestação do órgão ambiental estadual sobre o documento, para que as atividades de licenciamento pudessem seguir adiante. “Uma vez que este fator influenciará diretamente sobre a viabilidade do empreendimento”, disse trecho do ofício.
O estudo em questão comparou a cachoeira Água Branca com a Cachoeira Vicenzi, localizada em Ponte Serrada (SC), por considerá-las semelhantes em aspectos morfológicos. “A Cachoeira Vicenzi foi escolhida para a realização deste estudo por possuir queda e vazão próximas ao esperado na Cachoeira Água Branca quando o empreendimento CGH Cipó for implantado e estiver operando”, explicou o relatório, ao afirmar que o empreendedor está comprometido a assegurar que o véu da cachoeira Água Branca seja mantido para preservar a beleza cênica do local.
Em sua conclusão, o estudo afirmou que após a instalação da PCH Cipó que “uma beleza cênica próxima à da cachoeira Vicenzi será mantida na cachoeira Água Branca”. Para isso, disse o estudo, será projetado e executado no início da queda d’água da cachoeira uma estrutura para manter seu véu uniforme. O objetivo é também que a água caia de forma contínua, mas, com altura de lâmina d’água reduzida, uma vez que “parte da água será destinada a geração de energia e posteriormente devolvida ao córrego Água Branca a jusante [depois] da cachoeira e casa de força do empreendimento”, finalizou o estudo.
A reportagem entrou em contato com a Unidade de EIA da Gerência de Licenciamento Ambiental do Imasul para questionar o parecer dado pelo órgão ambiental ao estudo apresentado pelo empreendedor, se este, por exemplo, tinha sido suficiente. A ((o))eco, a equipe disse que o documento ainda não havia sido analisado.
Patrimônio turístico e natural
Para apurar a localização e características naturais da cachoeira Água Branca, ainda em outubro, o MPMS também realizou uma vistoria na cachoeira Água Branca. Segundo o relatório, o campo foi realizado no dia 6 de outubro, e deve subsidiar a análise de possíveis impactos ambientais a serem provocados por conta da instalação da hidrelétrica.
De acordo com o Promotor de Justiça Thiago Barile, constatou-se que a trilha de acesso à queda d’água estava preservada, mas a atividade turística estava dificultada pela não existência de cordas durante todo o percurso, o que auxiliaria o trajeto da população local e viajantes.
“Após vistoria presencial, foi possível constatar que a Cachoeira Água Branca se reveste de evidente patrimônio turístico e natural de Pedro Gomes/MS, notadamente em virtude de sua altura considerável (aproximadamente 80 metros)”, disse trecho do relatório.
Enquanto a hidrelétrica ainda não é construída, em Pedro Gomes moradores se unem em defesa e pela preservação da cachoeira. Nelson Mira Martins é um deles. Proprietário de um imóvel rural nas proximidades da região, ele apresentou, de forma escrita, considerações dele, e também de outros moradores da comunidade do município de Pedro Gomes (MS), durante a vistoria.
“A Cachoeira D’Água Branca é o ponto relevante da identificação histórica e turística de Pedro Gomes no cenário nacional, a maior de queda livre da região norte, de imponente, exuberante e notável beleza cênica, constantemente visitada por turistas do Brasil todo, que inclusive faz parte da Rota Norte do turismo sul-mato-grossense”, disse Martins no documento entregue ao MPMS.
O proprietário também defendeu que não se justifica a “parcial destruição” da queda d’água para um empreendimento de “ínfimo impacto na matriz energética do país”. “Uma vez que a PCH irá produzir de 2 a 3 MW, não constituindo nenhum benefício para o município, independente de alguma contrapartida proposta”, concluiu.
((o))eco entrou em contato com a Promotoria de Justiça de Pedro Gomes (MS) para solicitar informações sobre os resultados da visita feita à cachoeira. À reportagem, o órgão disse que o relatório da vistoria não constitui nenhum parecer conclusivo sobre a situação que envolve o processo de licenciamento da hidrelétrica, e que este ainda está em desenvolvimento.
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